Aconteceu no parque

Eu e minha amiga Susana inventamos um curso de literatura e fotografia. Como criar narrativas, seja com palavras, seja com imagens. É um curso bonito, foi um sucesso quando o apresentamos pela primeira vez. A pandemia impediu um segundo e por isto nos reunimos: pensamos em criar uma versão on line. Susana é atriz e escritora, nos conhecemos porque nossos filhos estão na mesma classe e são também muito amigos. A ideia de uma reunião sempre é boa, porque nós podemos trabalhar e as crianças, brincarem. E como já sabemos que ao ar livre sempre será mais seguro, transferimos a sessão de trabalho para uma mesa do parque. Nós trabalhávamos, enquanto os meninos tentavam encestar a bola de basquete. Uma manhã de céu azul, temperatura agradável de fim de verão.

Não começamos a trabalhar imediatamente. Primeiro falamos dos nossos medos: da falta de trabalho, das incertezas, do ano escolar que está prestes a começar. Falamos da vida, das nossas decisões de tentar viver, fazendo o que gostamos. A poucos metros escutávamos as risadas dos meninos, felizes, fazia tempo que não se viam. Nos interromperam várias vezes. Quero sorvete. Quero água. Me deixa o telefone. E nós nos queixamos da dificuldade que era trabalhar com criança por perto, sobre o medo que o excesso de telas nos produz, que as crianças já não sabem viver sem uma. Do difícil que está sendo tudo isto.

Achei estranho quando uma homem passou correndo por nós e pulou a grade que separa o edifício do parque. O condomínio onde vivo forma uma U, com um pátio interior comum a todos e uma grade que nos separa do parque público. Achei estranho, mas não me preocupei. Na verdade, nem pensei. Estávamos já com a cabeça no curso. Em seguida apareceu uma ambulância. Mas também não me preocupei. É comum atendimento médico domiciliar na Espanha. Mais ainda em época de pandemia. Continuamos um pouco mais. Até que as crianças vieram a interromper outra vez. Tenho fome. Tenho pipi. O que tem para almoçar? Nos despedimos e fui preparar a comida dos meninos.

Estava na cozinha e Hugo me grita. Mamá, vem! Do alto do terceiro andar vimos o que do parque não pudemos ver. Uma pessoa estava morta no chão do nosso pátio. A polícia estava ao lado. Já tinham tapado o corpo, de fora só os pés. Pelo sangue espalhado, deduzi que tinha sido suicídio. Fechei as cortinas, baixei as persianas e falei para os meninos ficarem longe da janela.

Os meninos comeram pouco e eu, nada. Com a casa em penumbra, fui para o quarto espiar detrás das cortinas o que estava acontecendo. Fiquei com medo que aqui fosse como no Brasil: onde um corpo pode ficar horas no chão. Mas não. Em pouco mais de duas horas a ambulância, que vimos antes, levou o rapaz. Sim, era um rapaz, me contou o porteiro. Não o conhecia.

Desde então tenho um nó na garganta, uso a palavra para tentar colocar para fora, incentivada pelas companheiras do Mães em Rede, que me lembram que estamos em pleno Setembro Amarelo, o mês de conscientização e prevenção ao suicídio. Na Espanha, se suicida uma pessoa a cada duas horas e meia. 10 ao dia. O número de mortos por suicídio é duas vezes maior que o número de vítimas de acidentes de trânsito. Sendo a segunda causa de morte entre menores de 30 anos.

São números assustadores e estarrecedores, mas totalmente invisíveis. São se fala de suicídio. É um tabu na nossa sociedade. Sou do tempo em que os jornais tinham proibido publicar notícias sobre o tema. A justificativa era de que falar, incentivaria a outros a seguir o mesmo caminho. Parece que a estratégia não deu muito certo e só serviu para colocar um manto sobre o problema. Além de estigmatizar a família do suicida.

Como disse, não conhecia o rapaz que se jogou da varanda vizinha à nossa. Por isto não posso nem sequer intuir sobre os motivos que o levaram a pensar que a única solução para sua angustia era a morte. Mas não consigo tirar da cabeça que provavelmente a última coisa que viu antes de morrer foram as crianças brincando no parque. Quero pensar que isto possa ter sido um consolo. Também agradeço que uma árvore tenha tapada a vista dos meninos e que eles não tenham presenciado o momento da queda. Nem sequer escutaram o barulho.

Também pensei muito sobre estas duas mulheres que conversavam sobre as dificuldades do momento em que vivemos, enquanto outra pessoa se tirava a vida. Sobre nunca é o que nos acontece e sim sobre os recursos que temos em nosso interior para lidar com nossos problemas.

Contrariando nossos cuidados em tempos de pandemia, achei por bem mandar os meninos brincarem na casa de um amigo. No caminho, fomos conversando sobre o acontecido. Falei que não sabia os motivos que levaram a esta pessoa a cometer tal ato, mas que era possível que fosse vítima de uma doença muito comum chamada depressão. É uma doença muito séria, temos que estar atentos a ela. Ainda mais agora, que a distância social está produzindo mais e mais solidão.

Espero que este texto seja uma pequena parte do Setembro Amarelo e sirva para ajudar a dar mais visibilidade ao tema. Que os governos criem mais mecanismos de prevenção, de atenção psicológica e psiquiátrica. Também que nós podamos exercer nossa empatia com todos que estejam perto. Porque o suicídio pode estar acontecendo enquanto teu filho tenta encestar uma bola de basquete.

Comentários

  1. Muito triste, mas é a realidade infelizmente. Aqui no Japão esse índice também é assustador! Belos narrativa.

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