Labirintos

Chave, telefone, óculos de sol, máscara. Não necessariamente nesta ordem. O verão veio e começa a partir. Setembro trairá o recomeço e a nova vida normal no novo anormal. Sentia muita a falta do verão. Este foi o verão possível.  Teve até duas viagens pela Espanha. Não mais que quatro horas de carro de casa, mas teve praia, sorvete, banho de rio e reencontro com a natureza. Teve a vontade de se sentir livre, mesmo que por alguns dias. Diante do mar, furando as ondas, deu até para esquecer e recuperar a energia para conseguir mais tranquilidade. Trazer a alegria de volta para juntos combater o cansaço.

Mas este também foi o verão do quase. Do possível, do entretanto, do talvez, do melhor não. Como ficamos sempre com o freio de mão puxado, fomos marcados pela ausência. Aquele sentimento de sentir falta mesmo estando no lugar certo, no momento adequado. Porque o grande companheiro do verão foi o cansaço, marcado nos olhos de todos sobre as máscaras. Cansaço de sentir medo, cansaço de tanta incerteza.

Vejo os meus filhos cansando do Fortnite, o jogo onipresente. Minha filha marcou no calendário a data de voltar para a escola. “Cada dia, um dia menos” – ela repete desde abril. Eles querem a volta. Não. Eles querem é não sentir mais esta inadequação. Mesmo que nem saibam que esta palavra exista. Eles querem como todos: que isto acabe. Isto que eles estão levando a situação melhor que muitas outras crianças.

 Duas amigas, que não se conhecem entre si, me contam virtualmente que seus filhos, ambos de nove anos, disseram que não querem voltar para a escola, porque para que serve aprender se todos vamos morrer? Não são os únicos casos. Estes são apenas os que tenho mais próximos. Mas sei que são muitas crianças estão passando por um momento que vai da apatia ao medo. Longe dos amigos, saindo pouco de casa, muitas horas de videogame, começam a mostrar sinais de que algo, definitivamente, não está bem com elas. Não todas, obviamente, mas não são casos isolados.

Fico muito irritada quando dizem que as crianças têm uma grande capacidade de adaptação e superarão o momento melhor que muitos adultos. Este também foi o argumento usado para tentar aliviar a preocupação dos pais durante o duro confinamento espanhol. “Não se preocupa, criança se adapta”. Gente, como assim? O fato das crianças terem esta capacidade não significa que devemos submeta-las a um tratamento pior que o dado aos cachorros. Seria então melhor não ser adaptável, assim receberiam um tratamento mais digno por parte dos governantes. Criança se adapta, mas criança também é esponja. Suga no ar a preocupação, o medo, o cansaço dos pais. Sente todas as ausências a que foram submetidos: dos avós, dos amigos, da escola.  Por isto sinto o quanto precisamos da volta ao todo normal que nos seja possível.

Vejo o cansaço no olhar de muitos amigos. Da amiga atriz, que perdeu todos os seus trabalhos neste verão; da amiga que tem um bar, obrigado a fechar mais cedo, diminuir números de mesas e tentando aguentar para não fechar definitivamente. Vejo o cansaço nos olhos de outra amiga, que trabalha com monitora em uma escola infantil e não sabe se terá trabalho em setembro. E tenho muita vontade de mandar – vocês sabem para onde- todas as pessoas que dizem que temos que ver isto como uma oportunidade para reinventar-se. Uma tragédia não é, nem nunca será, uma oportunidade. Reinventar-se não deveria ser confundida com sobreviver.

Mas não é só a preocupação com a economia familiar. Todos nós temos o medo de adoecer, não poder estar com a prole, de não ver os pais, de ver os filhos apáticos. Estamos muito cansados do noticiário, da cronologia do medo. Por isto não me surpreendo ao ver o mau comportamento dos mais jovens, e de não tão jovens, que se arriscam contra o vírus sem pensar. Entendo que grupos de adolescentes se reúnam na praia ou nos parques sem máscara, sem distância. Há um momento em que o desejo a deixar tudo atrás supera qualquer prudência. Todos nós compartilhamos este desejo, a diferença é que ainda nos controlamos.

Como nos controlamos, o que escuto deste verão é: “sim, fomos, mas foi tudo um pouco estranho”. Sim, está tudo muito estranho mesmo. São as ausências que notamos. Presos em um labirinto de espelhos, sem encontrar a saída, vamos vivendo neste mundo louco. 

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