2020, UM ANO PARA SER ESTUDADO

Mãe, pai e filho de 13 anos à mesa para o 80º almoço da quarentena. Visto pela janela, o céu azul do outono carioca é um cenário fora de contexto na tempestade verde e amarela. O garoto puxa o papo: “Lá pra 2100, as crianças vão ter que estudar o ano de 2020 na escola”. A mãe fica imaginando se em 2100 ainda haverá escolas, professores, livros… Caso existam, já tem uma sugestão de paradidático: ‘Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela’.

O romance distópico de Ignácio de Loyola Brandão foi escrito bem antes do apocalipse da Covid-19: entre 2014 e 2017. Mas o país “cujo nome ora me escapa”, palco da história de amor de Felipe e Clara, é uma terra assolada por uma peste fatal, onde o Ministério da Saúde foi extinto e o governo está nas mãos de um presidente sem cérebro. Isso mesmo.

Aliás, não só o presidente, mas “87,5% dos nossos Astutos (eufemismo para ‘políticos’) passaram a nascer sem o DiCPF (Córtex Pré-Frontal Dorsolateral), cuja função é inibir os impulsos perigosos que nascem nas partes mais retrógradas, preconceituosas, anticivilizatórias e criminosas da mente”. Foi a última descoberta do Ministério da Saúde, antes de ter as portas fechadas.   

As estradas dessa terra são constantemente bloqueadas, forçando motoristas a esperar que passem os trens com vagões lotados de mortos pela peste. Ou que andem as filas da autoeutanásia, conduzindo ao abismo final cidadãos a partir dos 67 anos – o “limite máximo para continuar vivo” estipulado pelo governo. São “velhos, inúteis, não podem pagar convênios médicos, não procuram empregos, não têm mais esperanças”.

Nesse país, o dinheiro passou a ser contado de uma forma diferente. Altas quantias (como as que, suspeita-se, foram desviadas de obras de hospitais enquanto a população morre doente) são medidas por unidades como “malas”, “pastas executivas” ou “cuecas”.  Há malas para cinco, dez, 16 e 23 milhões. Cuecas para um ou dois milhões, e assim por diante.

Já o tempo, este deixou de ser medido; não tem mais importância. “Todos vivem à espera do que vai acontecer, sabendo que nunca acontecerá”. Na distopia engendrada por Brandão, o país foi estudado por consultorias internacionais que pretendiam entender o que esse povo quer; como age; quais são seus projetos e sonhos; por que mantém tanto humor… Mas, por total ausência de repostas, o país acabou “catalogado entre os grandes mistérios de todos os tempos”, ao lado da existência de Atlântida ou da vida após a morte.

Numa viagem alucinada por várias cidades, um dia o protagonista Felipe se senta ao lado de um sujeito chamado Euclides num ônibus. Na conversa, os dois chegam à conclusão de que, por ali, a vida “normalizou-se na anormalidade” – citação ao primeiro livro-reportagem brasileiro, Os Sertões, de Euclides da Cunha, publicado no longínquo 1902.

A mãe larga os talheres e, pela janela, olha para aquele céu desconcertante de tão azul. “Verdade, moleque: 2020 vai precisar ser estudado”, diz, sem qualquer certeza sobre como será “a nova anormalidade”, que por aí já estão chamando de “o novo normal”.

Comentários

  1. Que texto, meus senhores e senhoras. Estou louca p viver “a nova anormalidade” plenamente. Parabéns, Fernanda!

  2. Perfeito!!!!Infelizmente esse novo normal ainda é uma incógnita!!Mas que seja melhor é o que espero para filhos e netos!!
    Mas está dificil com o que estamos vendo,muito dificil!!!

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