Nuvem
Ando enfeitiçada, emburrecida, viciada no canto daquele bicho azul. Quando ele canta, fixo os meus olhos no mato. Me abasteço da esperança de vê-lo novamente. Passado um tempo percebo que deveria mesmo é estar em outro canto, ocupada com meus afazeres e volto à vida normal. Tento me distrair dele e enquanto tento imagino que se estivesse distraída talvez ele viesse me visitar. Já falei do pássaro às crianças, já descrevi, comprei livro, mostrei fotos, gritei e gritei para avisar: “Olhem, olhem, é ele. O Java Kingfisher”! Os dois começaram até a dizer que também haviam visto o pássaro, mas enquanto diziam deixavam transparecer pelos olhos baixos e a expressão decepcionada que não tinham visto nada. Talvez já comecem mesmo a achar que o tal do pássaro é um conto, invenção, criação da minha imaginação.
Ontem Ketut estava aqui em casa conversando sobre os laços que construímos nesses quase dois anos de Bali, e que não queremos perder quando estivermos distantes dela, de repente, ele passou à nossa frente e ela conseguiu ver comigo o voador encantado, de asas impressas com um azul brilhante e um bico longo, alaranjado. Ela, mais sabida das coisas da mata, me mostrou onde ele se escondia: em uma ponta da folha de um coqueiro que fica ao final do imenso arrozal que circunda nossa casa e nos serve de jardim. As crianças correram para vê-lo, mas chegaram atrasadas e não acompanharam o primeiro vôo. Ficamos os quatro em um silêncio expectante. Ketut e eu víamos ao longe, bem escondida, a bela penugem azulada e minúscula. Tinha agora uma testemunha de que ele, de fato, vez por outra cruzava o nosso quintal. Os meninos, de boca aberta e olhos atentos, tentavam identificar: “No primeiro coqueiro, aquela folha mais caída do que as outras, um pouco amarelada.” Ouviam o canto, partilhavam da nossa excitação, mas queriam mesmo era vê-lo em toda a sua beleza e graça. Infelizmente não conseguiam enxergar o pequeno e longínquo ser e continuavam atentos e curiosos.
Perdemos ali uns vinte preciosos minutos, até que nós duas o vimos voar novamente e eles resolveram, à maneira sábia das crianças, o sentimento de desilusão por não conseguirem acompanhar a cena: “Vamos ver as garças?”. A eles interessava o fato simples, concreto, evidente, logo à frente dos seus pequenos olhos. Eles apreciavam a beleza exuberante que tomou conta do nosso quintal recentemente, quando colheram todo o resto da safra de arroz, o último ciclo completo que viveremos nesta casa. Enquanto eu disfarçava meu desassossego e esperança de que o pássaro viesse novamente. Queria dividir o sabor dessa beleza rara, a memória daquele azul que, ao abrir as asas, me faz lembrar que o céu existe, e o quanto é bom ter tempo para ser visto, sentido, e que vale se emocionar por tanto ou por “tão pouco”, por algo que está ao nosso alcance e que muitas vezes não conseguimos perceber.
Ali naquele espaço consagrado pela natureza brincamos por um bom tempo, antes das aulas de matemática e pintura. Terminamos a arrumação da casa e eles foram aos livros. Fizeram uma nova consulta ao catálogo de pássaros da região, o dedo apontava para o Java Kingfisher: “É ele, não é?” E com a pergunta veio a percepção de que não conseguiria mostrar o tal do pássaro senão estático em um livro. E que minha necessidade de provar que ele existe, voa e faz voar, também é fruto dessa tal história de crescer e procurar no raro a razão para se encantar. No meu silêncio, me perguntava: “quando foi que parei de sonhar que voava? Quando foi que aterrissei de vez”? A resposta chegou pura, daquele jeito de quem ainda sabe das coisas: “Mamãe, sabia que as nuvens são o chão do céu?”.
Me vi nuvem cheia d’água. Me deixei chover. Me senti de passagem, seguindo a direção do vento, me juntei ao “chão do céu” e logo em breve pegaremos todos uma carona em uma nuvem dessas. Habitaremos uma outra urbe, um novo ambiente, às vezes azul outras cinza, talvez sem o canto do pássaro anil, mas conscientes de que para existir por inteiro temos que estar envoltos na mesma imensidão de sempre, nesse espaço que está lá fora, mas que não pode deixar de existir dentro da gente.
lindíssimo Bi….saudades dessa sua lindeza toda. bjs amiga
Saudades da sua beleza também, Fé. Um beijo grande em você.
Texto mais linddo!! Muito amor! ???
Obrigada Xará. Nos vemos em muito breve. Um privilégio te conhecer aqui. Beijos
Bia, és tu também o pássaro azul, na tua maneira de encontrar e encantar quem pela tua vida passa.
Essa nuvem cheia de àgua em que te transformas de quando em vez é encantada pois consegue transmitir a tua alma, linda, forte e que me deixa sem palavras: apenas a vontade de também eu me tornar na mesma nuvem cheia de àgua, e contigo partilhar esse tesouro de momento que é no fundo o encontro das nossas almas!
Vou sentir a tua falta física, mas pessoas como tu, ficam para sempre guardadas no meu coração AMIGA!
Excepcional o teu texto, aliás, como sempre! Não deixes de registar a tua alma, perdemos todos se o fizeres!
Nova por aqui.
Obrigada, Bia, por trazer poesia que faz voar….
Amiga tão querida, e agora? Qual vai ser a minha hipótese diária de uma boa gargalhada sem você tão perto? Obrigada pelas palavras. ADORO VOCÊS, família bonita.
Bia, uma amiga que mora em Berlin me mandou o link de vocês. Estou encantada com teu olhar, teu quintal e todas essas vivências próxima à natureza.
Tu morou em Lisboa antes?
Sou gaúcha e comecei a migrar quando fui pra São Paulo, depois Toronto…depois viajamos 1 ano pela Europa, Brasil e voltamos para o Canadá. Tenho um blog desde 2008.
E publiquei um livro de crônicas na Cultura em novembro passado. Queria muito que lesse. Se pudesse, te enviaria.
Chama Moscas no Labirinto. =)
Tão espetacular experiência de viver em Bali. Queria muito seguir em contato e te lendo aqui…
Obrigada por essa poesia logo de manhã.
Um beijo,
Eliana Rigol
Ps.: não tenho facebook. Só Instagram. Tu tem um pessoal?